ex-hansenianos e doentes psiquiátricos
Por Marise Jalowitzki
17.março.2015
http://compromissoconsciente.blogspot.com.br/2015/03/antigo-leprosario-de-itapua-em-porto.html
"Canta, Nair!" - propõe Da. Eva. "Não conta a tua história, que aí nem eu me seguro e começo a chorar!"
E a Nair:
"Tão longe, de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento?
Quisera, saber agora, se esqueceste, se esqueceste o juramento!"...
É o Lazareto, ou Hospital Colônia de Itapuã, a Cidade Inventada
Nestas horas de silêncio, quero enviar votos de Paz, Serenidade e Amor a todas as pessoas de Boa Vontade!
E, nesta noite, uma madrugada calma e silenciosa, dirijo em especial uma Prece a todos os que já habitaram e ainda habitam o "Leprosário de Itapuã", aqui em Porto Alegre-RS.
Gente, eu já havia escutado desta Cidade Inventada há mais tempo, um grande complexo, mas, sabe aquilo que é contado pra gente como se já fosse história, aquilo tipo uma página que foi escrita em um momento obscuro, perdido no passado? Sim, pois o complexo até hoje mostra-se bonito no concreto, uma pequena cidade em meio ao mato e com um dos lados dando para o rio (Praia das Pombas). Mas, o fato de as pessoas identificadas pela doença terem sido arrancadas de seus lares para viverem uma vida de exílio, sem direito nem à despedida, foi cruel demais!
Quando soube, agora há pouco, questão de dias, que ainda há residentes-pacientes-sobreviventes lá, entrei em uma pena profunda. Um misto de dó e Respeito, Compaixão e Admiração pela Persistência, Perseverança, os sorrisos complacentes de alguns, o silêncio de tantos, os sopros ao vento dos que já se foram! Tão pertinho daqui, continuam esquecidos pela maioria, a sociedade mal comenta, muitos familiares nem vem visitar, continuam vivendo, continuam contando os dias...
O governo, na atualidade - com Justiça - há de provê-los até o final, "enquanto houver um único", como diz o assessor, um filho criado na Cidade Inventada! Eles foram arrancados de suas casas e do convívio social. Nada mais de direito de circular em nenhum lugar que não fosse na chamada "Ala Suja" daquele Complexo! O mundo se resumiu ali, alguns com algumas fotos, e as lembranças! Nenhuma outra cidade, nunca uma viagem para fora dali! Sequer atravessar os muros da "Ala Suja" para a "Ala Limpa", onde ficavam a enfermaria, os médicos, enfermeiros, funcionários, alimentos e remédios. A eles, os expurgados, expulsos, doentes, estigmatizados, estava reservado o exílio imposto, depois de um sequestro do convívio das famílias.
Quando ouvi o depoimento da Da. Eva, que foi levada para lá com 7 anos, sem saber para onde estava sendo levada, longe dos pais, orfã compulsória, sem saber que ficaria ali a vida inteira (como aconteceu com os quase 2 mil que para lá foram levados!), dói na alma!
"A viagem durou horas e horas. Eles paravam pra descansar no meio do caminho. Muito tempo. 'Pra onde vocês tão me levando?' - eu perguntava! E eles respondiam: 'Pra um lugar bem bonito!"... (dá para imaginar a angústia de uma pequena, separada de seus pais para sempre? Ela, hoje uma senhora idosa, declara: "Eu pensei que não ia aguentar!")
Sim, na Cidade dos Leprosos em Itapuã tinha cadeia, escola, igreja, cemitério! Olaria. Eles mesmos construíram um teatro e área de jogos! |
Um homem declara: "Eu não queria ficar ali. Eu sabia que ali não era meu lugar. Mas era!... e é até hoje!"
Muitos tentaram fugir. Alguns conseguiram. Outros, não. Quem era pego fugindo, era preso. Na reincidência, aumentava o número de dias. Vimos até uma sala tipo solitária, sem janelas e muito alta. Sim, na Cidade dos Leprosos em Itapuã tinha cadeia, escola, igreja, cemitério! Olaria. Eles mesmos construíram um teatro e área de jogos! 'Tá tudo lá, ainda, contando silenciosamente as historias de dor, sofrimento e superação.
Todos os moradores dessa cidade peculiar precisavam seguir estritas regras de convivência. |
Vários, por desespero, acabaram se suicidando!
O Paulo Roberto Goulart, do serviço administrativo, foi criado no local e trabalha lá há mais de três décadas. Ele comenta: "Eles não eram doentes psíquicos. Tinham a noção total do que havia acontecido. Do que fizeram com eles. E não tinham como sair daquilo! Aí, vários não aguentaram e se suicidaram!"
Entrada do Hospital Colônia de Itapuã - as muretas à esquerda e à direita da foto eram o divisor. Mesmo quando as famílias vinham visitar, não havia o contato físico. Ficavam se olhando de longe. |
Quando em 1986 o hospital foi finalmente desativado e os internos compulsórios dispensados, alguns, ou por terem mutilações incapacitantes, sequelas que necessitam de atendimento diário (curativos, etc.), e já idosos, ou também por já terem sido "esquecidos" totalmente por suas famílias, ficaram ali! E estão até hoje.
Há também, na Colônia-Cidade, outros internos, pacientes psiquiátricos que para lá aportaram a partir da década de 80. "Os doentes psiquiátricos oriundos do campo, da lavoura, encontram aqui lugar para continuar suas lides, uma atividade para quando estão em condições."
Hoje alguns dos predios ainda recebem manutenção e, há dois anos, o pão é distribuído nas casas dos que ainda conseguem executar suas tarefas. |
As casas, que, originalmente, eram destinadas aos enfermeiros e funcionários, hoje estão abandonadas e, algumas poucas, utilizadas pelos ex-hansenianos (sim, ex, pois todos estão curados atualmente da doença. A Colônia de Itapuã é considerada a em melhor estado, no Brasil. Ficou só o preconceito dos que estão de fora.
C-h-o-c-a-n-t-e! Triste! Enternecedor!
O museu ostenta pertences dos internos. Entre eles, fotos de mulheres vestidas de noiva que, depois, foram separadas de sua família. Fotos de mães abraçando suas crianças, uma vida normal, até que foram separadas de suas crianças, de sua vida. Maridos e filhos, separados de seus entes queridos, agora apenas um entre outros desconhecidos. Um drama real, surreal!
vestido de noiva de uma hanseniana |
As crianças e jovens que ali estavam, cresceram, casaram.
Por determinação governamental, os bebês eram separados compulsoriamente dos pais logo ao nascer e milhares deles cresceram em orfanatos. Alguns poucos foram adotados sem nunca saber de sua origem |
As jovens esposas, ao dar à luz, sequer podiam tocar em seus filhos, que logo eram levados para uma outra ala. Uma vez por mês (por que só uma vez ao mês?) os filhos eram trazidos para que as mães e os pais os pudessem ver, separados por vidros! Quando pequenos, eram colocados em cestos, como os da foto, e expostos para que os pais os pudessem ver. (Sabemos que, como no resto do país, algumas dessas crianças foram adotadas, os nomes de batismo trocados, nenhum laço mais, nenhum vínculo!
Agora, o MORHAN - Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase tenta, desde 1981, retrazer a identidade para os que ainda buscam notícias, além de pleitear uma indenização às crianças nascidas nesta triste situação.)
"Maldição divina" - A Ignorância e o Estigma
A ignorância fazia com que muitos acreditassem que o doente estava sendo punido por um pecado grave e podia contaminar quem estivesse próximo. Só havia uma coisa a fazer: isolar os impuros." |
Além da dor, da separação, da segregação, ainda o estigma, a repulsa dos demais.
Nas cidades de origem, receberam a repulsa e a segregação dos vizinhos, amigos, parentes, colegas de escola, pároco... "Leprosa, sai daqui!" - repudiavam uma menina em São Leopoldo, que foi proibida de frequentar as aulas, mesmo antes da determinação governamental do isolamento compulsório. Os pais foram proibidos pelo vigário de assistir missa.
(Na Bíblia - Mateus 10:8 consta como missão dos apóstolos: "Curem os doentes, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios.")
Como a doença se propaga pelo suor e respiração (é um bacilo), este casal de São Leopoldo e a sua menina ficaram infectados e foram, por determinação do governo, levados para a Colônia de Itapuã. A menina foi ficando cega e, anos mais tarde, quando ficou pronto o prédio-cine construído pelos próprios pacientes (!!), nem conseguiu assistir a um filme...
Hoje, dois comprimidos resolvem a questão do contágio! Isso mesmo. Dois comprimidos excluem a chance de contágio. E a doença, se tratada logo, pode efetivamente transformar-se em Cura!
O diretor geral Mogar diz terem sido 'no auge' 2.400 internos. O assessor Paulo Roberto diz: "Era muito sofrimento... chegava a ter quatro, cinco em um mesmo quarto! Alguns não aguentavam e se desesperavam mesmo! E o preconceito continua até hoje. Neste verão fui à praia. Um vizinho parou de tomar chimarrão comigo depois que me viu usando a camiseta em defesa do movimento de reintegração!"
A todos eles, uma oração de Paz!
Boas Vibrações de Luz!
Votos de um Estágio Melhor em outras Paragens, onde o "agro tormento da saudade" que ainda está nos corações e mente de todos, possa se dissipar e o calor do afeto e do carinho, da presença amorosa, possa ser uma constante, finalmente!
Hanseníase no Brasil, hoje
E, pensando na Hanseníase em si, pensar que ela continua, que o Brasil é um dos países de maior incidência, dá um aperto. Pois o preconceito continua, a desinformação também. E o tratamento, por esta mesma desinformação e descaso, também!
Sabem a talidomida, aquele comprimido que, originalmente foi dado para as mulheres grávidas para curar enjôo e acabou gerando milhares de bebês deformados, com bracinhos e perninhas curtinhos, ou, simplesmente, sem os membros? Pois é, estes comprimidos ainda estão sendo distribuídos, especialmente no interior na região amazônica, como parte do coquetel de tratamento do portador da moléstia de Hansen... Só que, como não avisam convenientemente os familiares, especificando que os medicamentos devem ser tomados somente pelo doente, os demais acabam ingerindo também, quando tem uma indisposição, enjôo, dor de cabeça!! E, assim, inacreditavelmente, continuamos tendo bebês nascendo mutilados! Estatísticas que, caso existam, não são divulgadas, como costuma acontecer em nosso país!
Conscientização! Informação é imprescindível para que as pessoas possam tomar as precauções devidas!
P.S. 1: A canção que é entoada em um dos videos gravados é de Carlos Gomes
P.S. 2: Não consegui descobrir se há um trabalho assistencial, psicoterapêutico, com aqueles queridos idosos que se alimentam de suas lembranças, dia após dia, até o momento da partida.
P.S. 3: Também não consegui saber se há alguma iniciativa de inserção social dos remanescentes, tipo levar alguns, anonimamente, a uma festa, culto religioso, baile, sessão de cinema, tipo dois, três por vez, pra não chamar a atenção de ninguém "lá de fora", pra não correr o risco de novas e totalmente inaceitáveis discriminações. Isto seria tão importante!
P.S. 3: Sobre os doentes psiquiátricos (que são mais que o dobro dos ex-hansenianos lá residentes), não há declarações.
LINKS:
1) Neste site tem um documentário em video muito importante, de qualidade ímpar:
http://www.acidadeinventada.com.br/#presents
O documentário A Cidade é dirigido por Liliana Sulzbach (neste documentário é que as mulheres cantam)
2) A inauguração oficial, todos na "Ala Limpa" - nenhum doente à vista - https://www.youtube.com/watch?v=-TKHvGxzD5E
3) Este é o video com o depoimento da garotinha de São Leopoldo, uma senhora que ficou cega. Faleceu em 2012 - https://www.youtube.com/watch?v=61G8veZoJR4
4) Caça Fantasmas - uma sequência de 3 videos com tomadas interessantes do interior dos prédios - Parte 1 - https://www.youtube.com/watch?v=EzWBpzmp7SU
5) Vidas à parte - https://www.youtube.com/watch?v=biuXRGdlqOo
Marise Jalowitzki é educadora, escritora, blogueira e colunista. Palestrante Internacional, certificada pelo IFTDO - Institute of Federations of Training and Development, com sede na Virginia-USA. Especialista em Gestão de Recursos Humanos pela Fundação Getúlio Vargas. Criou e coordenou cursos de Formação de Facilitadores - níveis fundamental e master. Coordenou oficinas em congressos, eventos de desenvolvimento humano em instituições nacionais e internacionais, escolas, empresas, grupos de apoio, instituições hospitalares e religiosas por mais de duas décadas Autora de diversos livros, todos voltados ao desenvolvimento humano saudável. marisejalowitzki@gmail.com
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www.marisejalowitzki.blogspot.com.br |
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