Menina de sorriso triste - Adoção e Abuso Infantil |
Dona Deolinda-dos-dentes-com-tártaro adoção e o abuso infantil
Por Marise Jalowitzki
12.junho.2012
A penumbra da quase-manhã se anuncia quando acordo, ainda
vislumbrando a imagem de uma menina sentada ao lado de uma mulher velha, que
tenta sorrir. Não sei bem de quem se trata, mas parecem conhecidas. É num
terceiro andar de edifício que passa por reformas, desabitado.
Dirijo-me à menina, com seus oito anos, talvez sete, meias
vermelhas listradas de branco, vestidinho fino para esta estação fria,
casaquinho, toca e tudo o mais. Pego-a por um dos tornozelos e, balançando
carinhosamente, digo:
- Levanta! Vem cá, vamos fazer um lanche!
Ela sorri um meio-sorriso, entre alegre, encabulada e
temerosa. Olha em direção à velha senhora que, continuando o esforço de
mostrar-se amigável, diz:
- Vamos, vamos!
“Já aqui”, procuro lembrar de onde as conheço e que
lembrança é essa e o que quer transmitir.
Puxa, mas era a Dona Deolinda-dos-dentes-com-tártaro”!!! E a
menina, de quem nunca soube o nome, que a acompanhava!
Tinha eu meus 12, 13 anos, quando morávamos na rua Marques
do Herval, em Santo Ângelo, uma casa antiga, enorme, estilo português colonial.
A situação financeira escassa, a mãe subalugava uma casa menor, nos fundos do
pátio. E, naquela ocasião, como estava ocupada pelo pessoal do circo, acabou
alugando também uma pecinha nos fundos de nossa casa para uma mulher com uma
menina que havia aparecido por lá.
De onde vieram e para onde foram, nunca soube. Foi uma
passagem, breve e longa o suficiente para marcar presença.
A mulher, uma descendente de portugueses, árida, magra,
envolta em saias e mantos que lhe davam um ar ainda mais nebuloso, beges e
pretos. Não sorria nunca, falava asperamente e dirigia-se à menina sempre de
modo grosseiro. Horrível aquela cena. A pequena, sempre assustada e submissa,
nunca ergueu os olhos em nossa direção, nem brincou com meus irmãos menores em
nenhuma ocasião. Apenas obedecia às ordens de “me traz a bacia”, “derrama a água”,
“guarda a sacola”, “me traz um copo d’água” e ouvia “vai de uma vez!”, “quantas
vezes já te falei!”, “quer ganhar mais bordoadas?”...
Não que nossa mãe também não fosse do estilo severo e também
não batesse na gente, mas não era sempre, não era todo o dia, como ali.
Várias vezesm na curta temporada em que ocuparam a peça, pude ver a mulher penteando os cabelos da menina com brutalidade, puxando e maldizendo. A menininha permanecia imóvel, extática, deixando-se machucar e chorando silenciosamente, copiosamente. Cheguei a falar com a mãe para mandar embora esta mulher, dizendo a razão. Não havia lei que nos amparasse. A mãe, compungida, disse que ela havia pago a quinzena adiantada e logo sairia.
Na nossa bobice natural, de pré-adolescentes impotentes (ingênuos da década de 1960), como não tínhamos como nos aproximar da pequena menina, pela absoluta falta de acesso que a idosa nos proporcionava, achamos por bem armar uma “vingança”! Demos um apelido: Dona Deolinda-dos-dentes-com-tártaro! Isso! Ríamos sorrateiramente e nos divertíamos, por vezes apenas balbuciando o codinome. Ela tinha mesmo muito tártaro na boca enrugada. Diferente de envelhecer é envelhecer ranzinza. As rugas adquirem um ar de maldade, a voz tem uma entonação daninha, faz mal a quem ouve. E aquela cor horrorosa nos dentes, um amarelo-laranja de quem não se escovava nunca, “combinava” com o odor da falta de banho periódico.
Na nossa bobice natural, de pré-adolescentes impotentes (ingênuos da década de 1960), como não tínhamos como nos aproximar da pequena menina, pela absoluta falta de acesso que a idosa nos proporcionava, achamos por bem armar uma “vingança”! Demos um apelido: Dona Deolinda-dos-dentes-com-tártaro! Isso! Ríamos sorrateiramente e nos divertíamos, por vezes apenas balbuciando o codinome. Ela tinha mesmo muito tártaro na boca enrugada. Diferente de envelhecer é envelhecer ranzinza. As rugas adquirem um ar de maldade, a voz tem uma entonação daninha, faz mal a quem ouve. E aquela cor horrorosa nos dentes, um amarelo-laranja de quem não se escovava nunca, “combinava” com o odor da falta de banho periódico.
A garotinha, adotada, servia de pajem, de serviçal. A
tristeza da abstenção da alegria em seu corpo inteiro foi esquecida por muitos
anos. Até esta quase-manhã, quando recebi a visita em sonho.
O que significaria? Que a idosa 'agora' conseguia rir um pouco mais e
estava tratando melhor a menina? Que elas 'agora' já não tinham o mesmo compromisso de permanecer juntas e
vinham anunciar sua nova caminhada? Ou era para eu escrever sobre isso? Como
para as duas primeiras questões não tenho resposta, apostei naquela que posso tornar concreta: comentar e
compartilhar.
A RESPONSABILIDADE DOS PAIS
Pais, antes de jogar a toalha e passar um filho adiante, seja através de uma adoção oficial, seja pelas clandestinas (que ainda são inúmeras) pensem melhor e não entreguem seus filhos! Muitas vezes, acreditando dar 'um futuro melhor', os pais roubam a coisa mais preciosa, que é o respeito, o carinho, o senso de pertencimento! A criança, em uma decisão assim, não tem voz, a criança é um instrumento nas mãos dos adultos. A criança é apenas uma consequência das decisões dos adultos, tem de arcar, infelizmente, com tudo de errado que os adultos possam realizar. A falta de sorrisos, de afagos, de carinho, de bons tratos, de compreensão, de folguedos, de amiguinhos, tudo irá determinar a maneira como aquele serzinho irá ver o mundo e se comportar nele. Maus tratos também são considerados abuso infantil. Abusam de sua fragilidade. Abusam de sua incapacidade de tomar suas próprias decisões. Aviltam sua visão de felicidade no mundo.
Pais, antes de jogar a toalha e passar um filho adiante, seja através de uma adoção oficial, seja pelas clandestinas (que ainda são inúmeras) pensem melhor e não entreguem seus filhos! Muitas vezes, acreditando dar 'um futuro melhor', os pais roubam a coisa mais preciosa, que é o respeito, o carinho, o senso de pertencimento! A criança, em uma decisão assim, não tem voz, a criança é um instrumento nas mãos dos adultos. A criança é apenas uma consequência das decisões dos adultos, tem de arcar, infelizmente, com tudo de errado que os adultos possam realizar. A falta de sorrisos, de afagos, de carinho, de bons tratos, de compreensão, de folguedos, de amiguinhos, tudo irá determinar a maneira como aquele serzinho irá ver o mundo e se comportar nele. Maus tratos também são considerados abuso infantil. Abusam de sua fragilidade. Abusam de sua incapacidade de tomar suas próprias decisões. Aviltam sua visão de felicidade no mundo.
Nesse momento envio um abraço mundial a todas as crianças
que precisam de um carinho e de um afago. Envio, também, um apelo aos adultos, para que
consigam ser mais generosos consigo e com aqueles por quem são responsáveis. Por um mundo melhor e mais compreensivo!
E, pra menininha deste relato, que hoje deve ter seus 50 anos, um soprinho de felicidade!
Soprinho de felicidade |
(E, ao final, se alguém quiser aproveitar esse episódio para disseminar questões de higiene, fique à vontade. No sonho, Dona
Deolinda-dos-dentes-com-tártaro apareceu com os dentes brancos, escovados e
limpos. Era só Dona Deolinda!!)
Querendo, leia também este triste relato no blog AÇÃO PELOS DIREITOS DOS ANIMAIS, de Dizy Ayala:
Um anjo chamado Zohra: menina de 8 anos teve sua vida ceifada por libertar pássaros
https://acaopelosdireitosdosanimais.blogspot.com/2020/06/um-anjo-chamado-zohra-menina-de-8-anos.html
Marise Jalowitzki Compromisso Consciente |
Escritora, Educadora, Ambientalista,
Coordenadora de Dinâmica de Grupo,
Especialista em Desenvolvimento Humano,
Pós-graduação em RH pela FGV,
International Speaker pelo IFTDO-EUA
International Speaker pelo IFTDO-EUA
Porto Alegre - RS - Brasil
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