Marise Jalowitzki
O menino, irresponsavelmente ordenado pelos pais a conduzir a carroça pelas avenidas da cidade, recolhia o lixo seco para reciclagem. Nunca deveria estar ali, seja pelo trabalho infantil proibido por lei, seja por conduzir uma carroça com um pobre animal atrelado, naquele sol inclemente de um verão cáustico, em plena avenida asfaltada.
O cavalo, visivelmente fatigado, demonstrava dificuldade em
seguir pelo asfalto ‘fervente’. Sim, este é o termo, pois a ‘fumacinha’ podia
ser vista exalando do chão. Há quanto tempo estava sem receber pelo menos água?
Há quanto tempo estava sem se alimentar? Há quanto tempo estava sem descansar?
O garoto, querendo mais agilidade do seu escravo de quatro
patas, não conseguia ordenar e ser ouvido. O pobre bicho estava extenuado. Sem
o famoso chicote, que tantas críticas já recebeu, o que o condutor fez? Pegou
uma faca em forma de punhal que trazia consigo e aplicou dois golpes no dorso
do cavalo.
A dor súbita foi tamanha que o susto fez com que o animal disparasse incontroladamente. Com a corrida desenfreada, o menino acabou caindo da carroça e o cavalo,
desgovernado, apavorado, sentindo dor, seguiu mais um tanto, a carroça empinou e foram-se, carroça,
cavalo e resíduos, para a pequena ribanceira à beira da estrada. Que triste
quadro!
Isto interessa à maioria dos humanos? Não. O animal “de transporte”,
assim como os “de corte” e todos os demais, são apenas encarados como
animais-objeto, nascidos - nesta crença alijada de bom senso - apenas para “servir
ao homem”.
E assim, perpetuam-se os maus tratos à exaustão, levando a
sofrimento diário, continuado, e, não raro, à morte.
Os cavalos, naturalmente imponentes em seu porte, com
energia e força, são utilizados até que não aguentem mais, literalmente. Muitos
deles morrem no próprio asfalto. E estas notícias parecem não sensibilizar os
órgãos públicos, cujos parlamentares dificilmente se mobilizam para aprovar
algum PL [que está a tramitar por anos] com o intuito de proibir a prática criminosa de
usar “animais de tração” para recolher os recicláveis.
Para SORTE deste cavalo hoje relatado, ele foi socorrido pela ONG Cavalo de Lata, um projeto que visa
instrumentalizar o catador de maneira que possa continuar seu trabalho, sem o
uso de animais.
Nesta cidade, Santa Cruz do Sul/RS, nascedouro do Projeto,
felizmente, a Guarda Municipal é vigilante, protegendo os direitos dos animais,
intervindo e assessorando, naquilo que lhe é possível, os que se dispõem a proteger
os seres que não conseguem se livrar da maldade humana. Embora a cidade de Santa Cruz
do Sul ainda não tenha – assim como milhares de outras pelo Brasil afora, uma
lei sancionada a proibir a absurda prática de escravizar animais.
Esta intervenção certeira foi a salvação daquele equino.
O garoto, felizmente sem se lesar, saiu correndo, pois
sabia que estava irregular, seja pela
maldade e violência que já aprendeu a usar desde cedo, seja por conduzir uma
carroça com cavalo em vias públicas. Ainda mais sendo menor de idade.
Quem o colocou nesta situação?
Adultos irresponsáveis, em todos os
sentidos!
Caos social! Necessária intervenção dos governos que, como quase sempre acontece,
empurram o urgente para mais tarde e tornam prioritário o que lhes convêm!!
O pobre cavalo, sangrando, assustado, no limite da exaustão
e do estresse, foi liberto das correias e da carroça e levado para o santuário
que o engenheiro de produção Jason Duani Vargas e esposa, publicitária Ana Paula Knak receberam, provisoriamente, em
local intencionalmente não divulgado. Cedido por um senhor que permite
que os animais sejam tratados, ocupem um espaço amplo, bonito, ensolarado, com mato e pastagem,
propício à vida tranquila, tão necessária para a recuperação de um passado
cruel.
O casal Ana Paula e Jason Duani cuida
pessoalmente, diariamente, de todos eles.
QUAL O MOTIVO DE NÃO DIVULGAR O ENDEREÇO DO ESPAÇO?
- Pelo risco de assassinato dos animais, por vingança.
- Pelo risco de roubo dos animais, para venda clandestina (vivos ou mortos, já que existem frigoríficos que utilizam a carne dos equinos para exportação, há notícias do fabrico de embutidos, etc.) (#)
- Pelo risco de promover maldades, pura e simplesmente pelo prazer de causar dano (o que não é tão incomum em nossa espécie)...
(#) Em São Gabriel havia um frigorífico que produzia (Foresta), sofreu embargo em 2017. Alguns dizem que fechou. Outros, que continua funcionando. O Foresta exporta(va) para Bélgica, Holanda, Japão, Rússia, Vietnã e Itália.
Há também o Mafrig.
Também existe outro em Araguari-MG.
Estes, são os oficiais mais conhecidos. Fora os clandestinos.
COMO É REALIZADO O TRATAMENTO DOS ANIMAIS?
São mais de duas dezenas de cavalos resgatados e-ou abandonados. Todos chegaram ali feridos.
Outros, como o nosso querido alvo do relato de resgate, estão nas UTIs – Unidades de Tratamento Intensivo: um lugar no meio do mato mais denso, fora do alcance do olhar e contato dos outros cavalos, somente recebendo os cuidados do casal. Quando perguntado sobre a existência de uma clínica, Jason responde: "Onde existe uma emergência para cavalos? Não existe!" Por isso, ele
aprendeu os cuidados básicos que o cavalo precisa e ele mesmo é quem aplica a medicação prescrita pelo médico veterinário,
realiza os curativos, cuida do emocional para, no tempo devido, ir socializando
o animal com os demais.
Alguns, agora já sarados, estão gordinhos, bonitos, saudáveis. Ainda mostram as marcas e cicatrizes de que foram alvo no passado. Muitos ainda transparecem em seus atos o medo, o estresse, o pavor que possuem de pessoas estranhas. Só reconhecem seus cuidadores.
Vi dois deles em estágio já avançado de socialização. Ficam afastados
dos demais, com uma longa cordinha solta. Um deles ainda com uma chaga exposta
na parte detrás da perna traseira direita. Há oito meses! Quando me surpreendo
com a longa duração da chaga, o Cuidador Jason Duani mostra a extensão da cicatriz. O ferimento
era bem mais longo, bem mais profundo e infeccionado. Está agora já uma terça
parte do que fora.
POR QUE ESTE PROJETO AINDA NÃO ESTÁ SENDO AMPLAMENTE ADOTADO?
O projeto CAVALO DE LATA existe desde 2012 e é
conhecido nacionalmente. Há várias publicações sobre. Mas, acaba sendo aprovado em tempo bem mais longo do que todos os que se importam com o cuidado dos animais gostariam que fosse. Na própria cidade onde o projeto foi concebido, a Lei municipal (7.646), prevê a substituição gradativa, passou a vigorar em 2016 e ainda há carroças circulando, em pleno 2020. E nenhuma parceria efetiva com a prefeitura foi firmada (ainda), tipo 'trocamos o cavalo e a carroça pelo Cavalo de Lata'.
Enquanto o engenheiro e protetor Duani separava a ração destinada àquele horário
para os animais já saudáveis, ia explicando em quantas portas tinha batido com
seu projeto e o quão difícil foi-é convencer as autoridades da necessidade de
implementar, urgentemente, uma legislação para proibir o uso de tração animal
nos centros urbanos.
Atualmente, o projeto foi adotado por uma empresa e gera um aluguel solidário para a ONG.
Disponibilizado em diversas versões, cada um adaptado ao tipo de material recolhido e à quantidade presumida do recolhimento. Há
cidades que trocam. Há cidades que financiam. Há cidades que doam.
O importante é ver a situação de forma ampla, de modo que
contemple todos os sujeitos, com assessoramento e pertinência. E é esta
integralidade de visão que mais me causou admiração. Todos os detalhes recebem
atenção e efetiva ação.
Quem poderia imaginar que um “senhor de negócios” estaria
protegendo, socorrendo e assessorando os animais sofridos no aqui-e-agora? Duani relata a dureza do trabalho, especialmente no inverno. "Não consigo quem se disponha a trabalhar diariamente, nem pagando! Agora, tudo bem, é verão. Mas, e no inverno? Chuva, frio, vento, lama? Ninguém aguenta, ninguém fica!" - desabafa.
Eles estão aguentando.
Proteção Divina sempre!
Tudo que vi naquela tarde, pra nunca mais esquecer.
E o casal utopista-realista encerra agradecendo a todos os que doam ração, medicação, que atendem ao chamado sempre que necessário para ajudar os que foram retirados do sofrimento e agora estão livres para viver suas vidinhas em Paz!
Gratidão.
- Santa Cruz do Sul - Caso citado - http://www.gaz.com.br/conteudos/regional/2020/01/30/161163-crianca_perde_o_controle_de_carroca_e_cavalo_fica_desgovernado_em_santa_cruz.html.php?fbclid=IwAR1OH0e6XIi4jnYs7qDxCYvPUZYM2NYOB3Gvb3r-PIP6FEXkRnokUVCY2ik
- Santa Cruz do Sul - Aqui uma sequencia de fotos - Como não sensibilizar-se? - http://www.gaz.com.br/conteudos/policia/2017/10/18/105432-cavalo_de_lata_recolhe_animal_e_dono_e_detido_por_maus_tratos.html.php
- Santa Cruz do Sul - Phillip Morris (2018) - http://www.gaz.com.br/conteudos/regional/2018/06/20/122862-cavalo_de_lata_entra_na_rotina_da_philip_morris_em_santa_cruz.html.php
- Santa Maria - https://olharanimal.org/santa-maria-rs-se-rende-ao-projeto-cavalo-de-lata/
- Em Teresina/PI, o projeto sofre rejeição (orquestrada, é óbvio), apesar de mostrar todos os benefícios, tanto ao homem quanto ao animal - A proposta é que a Prefeitura subsidie. Qual a perda? Há modelos adaptáveis a cada realidade.... Sim, é uma longa caminhada! - https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/carroceiros-nao-aceitam-cavalo-de-lata-vereadora-diz-que-projeto-protege-profissionais.ghtml
- Salvador/BA (2018) - Após 3 anos tramitando, projeto é aprovado - http://www.bahiaja.com.br/politica/noticia/2018/04/27/programa-cavalo-de-lata-e-aprovado-pela-camara-de-salvador,109827,0.html
- Salvador/BA (2018) - Após 3 anos tramitando, projeto é aprovado - http://www.bahiaja.com.br/politica/noticia/2018/04/27/programa-cavalo-de-lata-e-aprovado-pela-camara-de-salvador,109827,0.html
Anda - https://www.anda.jor.br/2013/06/camara-aprova-projeto-que-propoe-trocar-carrocas-por-cavalo-de-lata/
Persistência!
Link deste post: https://compromissoconsciente.blogspot.com/2020/03/cavalo-de-sangue-cavalo-de-lata-mudando.html
BENÇÃOS A TODOS OS QUE PROTEGEM, CUIDAM E DEFENDEM OS MAIS FRÁGEIS, TODOS OS SERES QUE NÃO TEM CONDIÇÕES DE SE DEFENDER CONTRA A EXPLORAÇÃO E A MALDADE HUMANA!
Link deste post: https://compromissoconsciente.blogspot.com/2020/03/cavalo-de-sangue-cavalo-de-lata-mudando.html
Marise Jalowitzki é mãe, avó, sogra, irmã, tia, filha, neta, amiga, cidadã.Também é educadora, escritora, blogueira e colunista. Palestrante Internacional, certificada pelo IFTDO - Institute of Federations of Training and Development, com sede na Virginia-USA. Especialista em Gestão de Recursos Humanos pela Fundação Getúlio Vargas. Criou e coordenou cursos de Formação de Facilitadores - níveis fundamental e master. Coordenou oficinas em congressos, eventos de desenvolvimento humano em instituições nacionais e internacionais, escolas, empresas, grupos de apoio, instituições hospitalares e religiosas por mais de duas décadas.Autora de diversos livros, todos voltados ao desenvolvimento humano. Querendo, veja aqui
Querendo, leia também:
http://acaopelosdireitosdosanimais.blogspot.com/2018/01/estado-de-santa-catarina-promulga-lei.html
Cavalo abandonado é sacrificado em Xangri-Lá |
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